A pressão sobre os sistemas agroalimentares é cada vez maior. A necessidade de aumentar a segurança alimentar e a sustentabilidade ambiental também. “Alimentar uma população mundial em crescimento é um dos maiores desafios que a humanidade enfrenta atualmente”, defende a secretária-geral da Associação Portuguesa de Bioindústria (P-BIO), Filipa Sacadura. Segundo o relatório Alternative protein sources for food and feed, publicado pelo Parlamento Europeu, em abril do ano passado, “a nível global, 57% da proteína alimentar é de origem vegetal. No entanto, a maior parte da proteína alimentar na Europa provém de fontes animais (55-60%). Prevê-se que nos, próximos 25 anos, o consumo de proteínas de origem animal aumente em cerca de 50% a nível global, assumindo um crescimento económico contínuo e um aumento dos rendimentos, particularmente na Ásia. O mesmo relatório indica que o mercado europeu para os produtos baseados em insetos deverá atingir as 260 mil toneladas já em 2030”.
Havendo uma limitação no solo disponível para a agricultura e para a produção de gado, aliado às alterações climáticas, “requerem-se alternativas mais sustentáveis a longo prazo”, acrescenta a responsável. As fontes alternativas de proteína – fermentação microbiana, produção de insetos e de algas e agricultura celular – entram aqui como potenciais soluções. A transição para novos modelos alimentares já está em curso e espera-se que, nos próximos cinco a dez anos, haja “um crescimento significativo na oferta destes produtos, à medida que os processos se tornem mais acessíveis e que a aceitação do consumidor aumente”.
O consumo de insetos já é uma realidade, especialmente na Ásia, África e América Latina, onde fazem parte da cultura alimentar há séculos. “A Europa é um mercado emergente, com produtos já disponíveis, principalmente na forma de farinhas e snacks, em países como França, Bélgica ou Países Baixos.” A carne cultivada (agricultura celular) ainda não está autorizada na União Europeia, mas já foi autorizada para consumo humano em Singapura, desde 2020, e nos EUA, desde 2023, contextualiza Filipa Sacadura.
Estamos a viver uma fase de mudança de hábitos e estão a surgir outras alternativas à alimentação convencional nacional e europeia. “Os insetos para alimentação já são o presente, apesar de ainda serem um nicho de mercado. Já existem produtos à base de insetos há alguns anos em hipermercados portugueses e em canais de e-commerce”, explica Simão Lima, diretor de qualidade e gestão operacional na Thunder Foods, empresa portuguesa de biotecnologia que produz o Tenebrio molitor (comummente chamado de larva da farinha). “Este foi o primeiro a ser aprovado para a alimentação humana na Europa e tem um conjunto de propriedades que o torna muito interessante para o mercado.”
A empresa faz todo o processo de produção animal até ao processamento alimentar e obtenção de dois produtos finais deste processo: um farinado proteico que consiste nas larvas desidratadas e moídas desta espécie – destinado à alimentação humana – e um fertilizante orgânico de inseto (frass) - destinado à nutrição de plantas e dos solos.
As vendas relacionadas com a alimentação à base de insetos têm aumentado na Europa, ao mesmo ritmo que cresce o leque de opções. “Em números, são consumidos em todo o mundo mais de duas mil espécies de insetos, e cerca dois mil milhões de pessoas já provaram, em algum momento.” Na Europa, em 2019, “apenas nove milhões de europeus já tinham provado alguma vez. No entanto, prevê-se que, em 2030, esse número seja de 390 milhões de europeus, um crescimento exponencial e, por isso, julgamos que é apenas uma questão de tempo e de investimento para os insetos entrarem em massa na dieta de quase toda a população”, refere Simão Lima.
José Gonçalves, CEO e cofundador da The Cricket Farming Co. (empresa portuguesa dedicada à produção de ingredientes alimentares obtidos a partir de grilos), explica que a utilização de ingredientes a partir de insetos já está a acontecer. “E acontece porque faz sentido racionalmente. O conteúdo nutricional é valioso e a pegada ambiental da sua produção é reduzida.”
Quando questionado sobre se existe uma barreira psicológica relacionada com o consumo, é perentório: “Não tencionamos pôr insetos inteiros no prato de ninguém. O que fazemos é um concentrado proteico em pó, que vai ser utilizado como ingrediente, para enriquecimento nutricional de outros alimentos.” Sem querer antecipar o futuro, o responsável refere que a empresa já está a trabalhar para o que se considera “ser a segunda geração de ingredientes baseados em insetos”.
O cenário atual é completamente diferente do vivido há dez anos, quando se começou a falar da possibilidade de utilizar insetos na alimentação humana. “Em 2016, poucos acreditavam que tal ideia ‘saísse da casca’. Hoje, a maioria dos nossos interlocutores entendem esta alternativa, quando os motivos lhes são explicados racionalmente”, afirma. Isto é particularmente válido para as gerações mais novas, quando falamos de consumidores, “mas também para os clientes da indústria, que já perceberam o match entre estes ingredientes e as suas gamas de produtos mais sustentáveis e mais cuidados nutricionalmente”.
José Gonçalves dá ainda o exemplo do ceticismo inicial gerado pelo sushi e o caminho de popularização que fez até hoje. “Aquilo que era disruptivo tornou-se absolutamente banal.” Já Simão Lima defende que são necessárias campanhas de desmistificação e de sensibilização, mas também do recurso ao marketing pelas empresas que produzem produtos alimentares com este ingrediente. “É importante que a imagem transmitida do consumo de insetos não seja através do consumo de insetos vivos, pois não é esse o modo de apresentação deste ingrediente, que não passa de uma farinha proteica com um aspeto e textura tão comum como outras farinhas.”
Considerando que as faixas etárias mais jovens estão mais propensas a consumir este tipo de produtos, o responsável defende as provas sensoriais às cegas e os testes de mercado. “Quando se vê o valor que o produto apresenta para as formulações, para a saúde ou para a culinária, o fator inseto deixará, com o tempo, de ser uma barreira psicológica. Mas é um trabalho que tem sido realizado pelas empresas”, sublinha.
Esta barreira psicológica é mais frequente nos países ocidentais, defende Filipa Sacadura. “No entanto, é importante desmistificar esta questão porque não é expectável que as pessoas consumam insetos ‘inteiros’. O que se pretende é obter farinhas de inseto, ricas em proteínas e de alto valor nutricional, que possam ser incorporados em quantidades baixas a produtos como pão, massas, barras proteicas, etc., para aumentar o seu valor nutricional”, refere.
O fator decisivo para a aceitação do público, defende, é a transparência e a comunicação clara dos benefícios nutricionais e ambientais. “É essencial garantir uma rotulagem detalhada, especialmente devido ao potencial de reações alérgicas, nomeadamente em pessoas alérgicas a crustáceos e ácaros.” À medida que os consumidores compreendam os benefícios e que mais produtos entrem no mercado, a aceitação “deverá crescer gradualmente”.
Existem outros desafios a enfrentar, desde logo a regulamentação, o financiamento e o conhecimento. José Gonçalves explica: “A regulamentação, porque a introdução de novos alimentos no mercado da União Europeia obriga a um processo que, num cenário muito otimista, demora dois anos. Por outro lado, as aplicações que já passaram por esse processo são somente o começo do que antevemos que seja o futuro.”
Quanto ao financiamento, “a maioria do capital de risco está menos disponível para financiar biotecnologia e indústria alimentar do que software, AI e as tecnológicas, em geral”. Existe também uma grande necessidade de conhecimento científico para otimizar processos e garantir produtos que vão ao encontro das necessidades de mercado, o que se reflete na captação de quadros que têm de ser formados internamente. “Não existem ainda recursos académicos que gerem profissionais para o setor. Felizmente, temos múltiplas parcerias com a academia, que já começaram a dar frutos e darão muitos mais no futuro”, afirma.
Simão Lima destaca a necessidade – já identificada – de ampliar a escala para validar produtos no mercado, o que se afigura na exigência de enfrentar o desconhecimento geral por parte dos diferentes stakeholders deste setor emergente. “O principal desafio é converter projetos de investigação e de pequena escala em iniciativas capazes de responder às exigências do mercado. Só dessa forma será possível alcançar os grandes players da indústria alimentar e deixar de ser um segmento de nicho.” Também a sustentabilidade financeira é um fator crucial “pois é necessário comprovar a previsão das tecnologias antes da comercialização do produto”. O que é demonstrado em estudos científicos em pequena escala “pode não ter os mesmos resultados quando aplicado em equipamentos industriais. Para atingir os padrões de referência, é fundamental melhorar todas as configurações de produção e manter um controlo rigoroso sobre cada variável”. E, claro está, esse processo exige um investimento significativo de tempo e recursos financeiros.
Outra questão relevante é a necessidade de ter equipas multidisciplinares. “Este setor abrange áreas tão específicas como a produção animal, a alimentação e os fertilizantes, tornando difícil para startups adquirir conhecimentos complementares com equipas reduzidas”, refere o responsável da Thunder Foods. Do outro lado, surge a pressão dos retalhistas e a cadeia de valor para obter certificações, mesmo quando o produto ainda está em fase inicial de desenvolvimento.
Os benefícios e oportunidades das soluções biotecnológicas são evidentes, mas também Filipa Sacadura refere os desafios a superar, desde logo a regulação e aprovação legal. “Muitos produtos inovadores necessitam de aprovação rigorosa antes de chegarem ao mercado, o que pode ser um processo longo e complexo”. Por outro lado, há que ter em consideração os custos de produção, uma vez que “algumas destas tecnologias ainda apresentam custos elevados, o que pode dificultar a sua competitividade em relação aos produtos tradicionais”.
Por último, a aceitação do consumidor, a familiaridade e a confiança nos produtos “são essenciais para o sucesso comercial, exigindo esforços significativos de sensibilização e comunicação”. Para a secretária-geral da P-BIO, superar estes desafios exigirá “o esforço conjunto entre governos, indústria e investigadores para acelerar o desenvolvimento e adoção destas soluções”. Esta associação está comprometida em criar um ecossistema favorável ao desenvolvimento da bioeconomia em Portugal, “garantindo que as startups e as empresas do setor possam prosperar e contribuir para uma alimentação mais sustentável”.
E de que forma o faz? Através do desenvolvimento de atividades de comunicação, para sensibilizar o público sobre os benefícios destas soluções e do mapeamento de oportunidades de financiamento. Mas também através de iniciativas que permitam aos membros da associação desenvolver a rede de contactos a nível nacional e internacional e da ligação a parceiros estratégicos através da criação de redes entre empresas, instituições de investigação e investidores para impulsionar o crescimento do setor. Filipa Sacadura refere ainda “o apoio regulatório e legislativo, através da participação em consultas públicas, apoio no esclarecimento sobre os processos de regulamentação e na obtenção de aprovações para novos produtos biotecnológicos”, mas também a promoção e internacionalização – com a divulgação e a representação do setor em eventos nacionais e internacionais – e a capacitação e formação.
Que benefícios?
Economia circular – Os insetos enquanto nova fonte nutricional surgem não para substituir, mas para complementar as opções tradicionais de alimentação. “Oferecem uma solução sustentável e numa perspetiva de economia circular, aproveitando recursos naturais que, de outra forma, seriam perdidos ou seriam gastos para o seu tratamento”, diz Simão Lima.
Qualidade nutricional – “Além da sustentabilidade, os insetos têm vindo a evidenciar-se pela sua qualidade nutricional, sabor e características funcionais – são um ingrediente diferenciador que agrega valor às formulações alimentares”, acrescenta, destacando os estudos e ensaios que comprovam que o cumprimento de três requisitos importantes – Saúde, Sabor e Sustentabilidade – respeitando o facto de serem comprovadamente seguros para o consumidor
Reduzidas emissões de gases com efeito de estufa – José Gonçalves recorda o apelo da reintrodução dos insetos na alimentação ocidental, feito pela Food and Agriculture Organization (FAO), em 2013, com a publicação do paper Edible insects – Future prospects for food and feed security. Aqui “enfatiza-se o facto dos insetos, como os grilos, serem alternativas saudáveis e nutritivas aos alimentos tradicionais, devido à sua elevada concentração de proteínas de alta qualidade, gorduras insaturadas benéficas, vitaminas essenciais como a B12, minerais como o ferro e o zinco, sendo também ricos em fibras que promovem a saúde intestinal”.
Personalização nutricional – Filipa Sacadura refere que a manipulação genética de microrganismos permite a produção de ingredientes específicos, abrindo caminho para a criação de novos produtos alimentares personalizados. Estas abordagens permitem ainda “reforçar nutricionalmente determinados alimentos ou produzir fontes alternativas de proteína”.
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