“A carne cultivada só será uma verdadeira alternativa quando houver capacidade industrial instalada”
O investimento em agricultura celular explodiu nos últimos anos, e atualmente 150 empresas em todo o mundo apostam sobretudo em espécies de volume (frango, porco, vaca) e em produtos mais caros e exclusivos, como wagyu, salmão, atum rabilho, foi-gras ou caviar. Em Portugal, a Cell4Food é a única do setor que se dedica à alimentação humana, desenvolvendo aquacultura celular. Em entrevista, José Espírito Santo, strategy, CFO e investor relations na empresa, defende que o objetivo de limitar os danos e abrandar o crescimento da produção tradicional “só é alcançável através do recurso às proteínas alternativas”.
O problema é que já não estamos a produzir as trezentas toneladas atuais de forma sustentada.
A forte aceleração da produção (intensiva) de proteína animal nas últimas décadas levou ao esgotamento/extinção de muitas espécies e ao “afunilamento” do consumo num número residual de espécies (menos de vinte espécies representam mais de 90% do consumo).
Também o impacto ao nível da saúde pública, consumo de água, desflorestação e emissões de gases com efeito estufa está bem documentado e já ultrapassou os limites (a segunda maior contribuição a seguir ao setor energético).
Assim, nas próximas décadas, apenas podemos limitar os danos e abrandar ao máximo o ritmo de crescimento da produção tradicional nas condições atuais. Este objetivo só é alcançável através do recurso às proteínas alternativas (plantas, carne celular e fermentação de precisão).
Há sempre espaço para “apertar a malha” em termos do controlo do impacto ambiental. A redefinição dos limites legais, a criação de “impostos verdes”, a diminuição da elevada subsidiação do setor, etc… Mas só se atingem resultados significativos com políticas positivas de incentivo e apoio ao investimento em investigação e desenvolvimento das novas (bio)tecnologias do setor agroalimentar.
Não acredito que tal seja possível ou que faça sentido. A proteína animal continua a ser a melhor proteína para a alimentação humana. No entanto, a alimentação humana não pode continuar a depender da mesma forma de uma indústria tão ineficiente e tão insustentável.
Há grandes desafios a ultrapassar até a carne cultivada chegar às prateleiras dos supermercados ou aos pratos dos restaurantes. A carne cultivada será uma verdadeira alternativa quando a sua textura e sabor forem otimizadas, quando o preço de custo se aproximar do produto tradicional (paridade), e, principalmente, quando houver capacidade industrial instalada suficiente para abastecer uma percentagem mínima significativa do grande mercado de proteína alimentar, que está avaliado em mais de três triliões de dólares por ano. Estas metas demorarão anos e décadas a serem gradualmente atingidas.
Sim, neste momento Singapura (2020) e Estados Unidos da América (2023) já aprovaram a comercialização de vários produtos de carne celular (frango), estando prevista a aprovação em muitos outros países (nomeadamente na Comunidade Europeia, Reino Unido, Japão, China, Austrália, etc.) gradualmente ao longo dos próximos anos, incluindo de novas espécies.
Não existe ainda uma reação dos consumidores à prova, dada a escassez da oferta. No entanto, as provas cegas já realizadas têm tido resultados surpreendentes, com a maioria dos críticos gastronómicos e chefs a não conseguir distinguir a carne cultivada (cozinhada em forma granulada) da carne de produção tradicional.
As dezenas de inquéritos realizados por todo o mundo revelam uma grande abertura e curiosidade na prova e no consumo regular, principalmente entre os jovens e segmentos com maior escolaridade (mais conscientes da crise ambiental).
Os principais desafios tecnológicos são a redução do custo (paridade), o aumento exponencial da capacidade instalada (scale-up) e a imagem do produto final (granulado versus corte/filete).
Nos últimos três anos, o investimento neste setor explodiu, existindo neste momento cerca de 150 empresas em todo o mundo (a Cell4Food é a única em Portugal), que já captaram quase quatro biliões de dólares acumulados em capital privado.
Um número crescente de Estados estão a promover linhas e fundos públicos de financiamento e apoio à investigação e desenvolvimento, nomeadamente a Holanda, Reino-Unido, Estados Unidas da América, Israel e China. No entanto, estes fundos visam essencialmente a fase inicial de investigação, até à construção de unidades industriais piloto. As construções de unidades industriais à escala alimentar vão exigir triliões de dólares de investimento ao longo de décadas para se atingir uma dimensão significativa.
No mercado há cerca de 150 empresas, principalmente nos EUA, Singapura, Reino-Unido, Holanda, Israel, China e Austrália. Entretanto, entramos numa fase de alguma estabilização e consolidação, pois já existe uma base consistente e sólida para o setor avançar de forma sustentada nos próximos anos.
“O capital tem sido quase exclusivamente privado, devido à escassez de projetos de investigação com financiamento público”
A aposta tem sido em espécies de volume (frango, porco, vaca) e em espécies/produtos de quantidade limitada e de preço elevado (wagyu, salmão, atum rabilho, foi-gras, caviar, etc.).
A Cell4Food é a única empresa do mundo a desenvolver carne de polvo (entre outras espécies marinhas). O polvo (vulgaris) tem registado quedas de produção com preços crescentes, sendo um animal extremamente inteligente e quase impossível de produzir intensamente em cativeiro (aquacultura). Para além de que Portugal é o maior consumidor per-capita de polvo do mundo e a Europa do Sul o maior importador.
Como referi, em Portugal existe apenas uma empresa de agricultura celular dedicada à alimentação, a Cell4Food, criada em 2022 por um grupo polivalente de cientistas e empreendedores com larga experiência em várias áreas. Há mais duas empresas com atividade em Portugal, uma na área da pele exótica de répteis (para a indústria da moda) e uma empresa de capital alemão dedicada à fermentação de precisão.
Já em 2023, foi criada a CELLAGRI Portugal - Associação Portuguesa para o Desenvolvimento da Agricultura Celular (www.cellagri.pt) e esperamos que muitas outras empresas venham a ser criadas neste dinâmico setor.
José Espírito Santo (à direita) com a equipa da Cell4Food.
O projeto foi apresentado ao mercado na 1°Conferência Internacional de Agricultura Celular, realizada este ano, em Braga. A reação do setor foi muito positiva e criou uma grande expectativa devido essencialmente à escolha do Polvo, uma espécie cefalópode com características neurológicas e biológicas muito diferenciadas.
Estamos a investir no desenvolvimento de outras espécies (peixes e crustáceos), quer para a alimentação humana quer para rações para animais de estimação (setor em forte crescimento, de alto valor acrescentado e com mais rápido acesso ao mercado).
É fundamental. Trata-se de um setor “deep-tech” numa fase de constante inovação em que as redes de partilha de conhecimento são fundamentais. No entanto, o capital tem sido quase exclusivamente privado (capitais de risco), devido à escassez de projetos de investigação com financiamento público que permitam um acesso mais aberto à tecnologia. A Cell4Food apostou fortemente em parcerias com várias universidades e institutos portugueses (IST/IBB, UA/CBA, UM/CBMA).
Independentemente do ponto de vista, o impacto das novas tecnologias nos setores tradicionais é sempre inevitável, e quanto mais cedo houver um trabalho de equipa e colaboração mais rapidamente se poderão adaptar.
De qualquer forma, não podemos esquecer as projeções de crescimento do mercado de proteínas animal a longo prazo. Por muito forte que seja o crescimento da agricultura celular (carne cultivada e fermentação de precisão) e dos produtos de origem vegetal, não vão conseguir acompanhar o crescimento global da procura. O que significa que, muito provavelmente, haverá mais produção de proteína animal tradicional em 2050 do que hoje!
A existirem encerramentos em escala, e tal só acontecerá a muito longo prazo, será uma consequência do mercado (consumidores) que optará gradualmente por produtos mais saudáveis, sustentáveis e éticos. Um exemplo mais critico é a crise crescente no setor dos lacticínios, que deverá perder uma grande parte do seu mercado na próxima década para produtos alternativos ao leite (iogurte e queijos) feitos com recurso à fermentação de precisão.
Como será um processo muito lento, poderão ocorrer perdas graduais de postos de trabalho na agricultura tradicional, ao mesmo tempo que serão criados novos empregos nas indústrias emergentes da biotecnologia (com mais valor acrescentado). Mas o saldo final não tem que ser negativo, seguramente terá valor acrescentado.
Acreditamos que exista uma subida de preços médios mais acelerada nos produtos de origem tradicional devido às crescentes exigências qualitativas, sanitárias e éticas, assim como eventuais “impostos verdes”. O produto tradicional genuíno, de origem certificada e de elevada qualidade tenderá a ser considerado um produto cada vez mais raro e caro no mercado (de luxo a longo prazo).
Ao mesmo tempo, devido à rápida inovação tecnológica, a redução de custos de produção na carne cultivada tem sido dramática (os custos caem a um ritmo superior ao que assistimos noutras inovações tecnológicas como nos microprocessadores, nos painéis solares ou na genética). Quando se passar para a fase de scale-up (food-grade), a escala industrial alimentar permitirá atingir ganhos de produtividade ainda maiores, podendo facilmente atingir custos muito inferiores aos produtos tradicionais de espécies mais caras ou raras.
Acreditamos que a paridade possa ser genericamente atingida na próxima década.
É uma pergunta muito difícil, mas apostaria que em duas ou três gerações (cinquenta a 75 anos), a produção de carne com células cultivadas ultrapasse a produção tradicional. Vários estudos recentes de consultoras internacionais apontam para um objetivo muito ambicioso de 25% a 35% de quota já em 2050.
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