Informação profissional para a indústria alimentar portuguesa
"A qualidade do leite e produtos lácteos, em termos de segurança alimentar, é indiscutível"

Entrevista com Maria Cândida Marramaque, Diretora-Geral da ANIL

Ana Clara24/06/2022

"Mais que um plano de modernização da indústria, fazem falta a ‘desburocratização’ e agilização de apoios que permitam uma maior disponibilidade financeira para fazer face a novos investimentos, nas diferentes áreas tecnológicas", garante a Diretora-Geral da Associação Nacional dos Industriais de Laticínios (ANIL). Maria Cândida Marramaque traça o diagnóstico do setor dos laticínios em Portugal e considera que entre os desafios do presente estão a sustentabilidade e economia circular, a descarbonização e a digitalização.

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Que radiografia faz atualmente da indústria dos laticínios em Portugal?

O leite é um produto estratégico em termos nacionais, não só ao nível da alimentação e nutrição, mas como pilar essencial ao nível económico e detentor de um papel fundamental ao nível da organização territorial. A indústria de leite e produtos lácteos nacional gera cerca de 1.460 milhões de euros por ano, o que representa 1,7% da indústria transformadora e é a terceira mais valorizada no seio da indústria alimentar com 11 % da vendas. Emprega diretamente cerca de 6400 pessoas, 7% do emprego na indústria alimentar, em 344 empresas, dispersas pelo território nacional. Possui um elevado grau de modernização e está bem adaptada aos mercados e às exigências dos consumidores.

A partir do leite recolhido, a indústria nacional produz um leque variado de produtos lácteos. Dos produtos mais tradicionais, passando por produtos especializados aos inovadores. Para constatar este facto basta olhar para um linear para, na realidade, sentir a diversidade.

Em termos de fabricações, os produtos com maior expressão, em termos de volume, são o do leite líquido (660 mil toneladas), dos iogurtes e leites fermentados (116 mil toneladas) e do queijo (85 mil toneladas).

Relativamente ao consumo humano de leite e produtos lácteos, apesar de não serem conhecidas as capitações de 2021, os dados relativamente a 2020 (118,3 Kg), mostram a recuperação face a 2015, que foi o ano de menor consumo per capita (115,5Kg).

Cada português consome, em média, 79 Kg de leite líquido (incluindo as bebidas à base de leite), os iogurtes representam cerca de 21 kg, os queijos têm um consumo per capita pouco acima de 13 kg por ano, e a manteiga 2kg.

No entanto, julgo que os valores tenderão a decrescer, e tal deve-se não só às alterações dos hábitos de consumo, acompanhada da diminuição demográfica e da concorrência dos produtos vegetais, mas também poderão vir a ser penalizados pela perda de poder de compra dos consumidores.

Cada português consome em média 79 Kg de leite líquido (incluindo as bebidas à base de leite), os iogurtes representam cerca de 21 kg, os queijos têm um consumo per capita pouco acima de 13 kg por ano, e a manteiga 2kg

Sem considerar a pandemia e as crises económicas que temos vivendo, que desafios e constrangimentos atravessa o setor?

Os desafios e os constrangimentos do setor não se confinam, longe disso, a alguns pontos, que possa aqui enumerar. Começaria pela competitividade e criação de valor para a indústria láctea, trabalhar pela sustentabilidade económica e financeira do setor, muito focada na recuperação dos desequilíbrios que existem ao nível da cadeia de valor. Alio também aqui o conceito da inovação, essencial para conduzir à mudança respondendo às alterações conjunturais, quer seja na ótica da captação de valor, quer na ótica da redução de custos.

Alargaria às preocupações existentes com a quebra de consumo de leite e produtos lácteos, que foram e são alvo de campanhas de desinformação e ‘atropelamento’ e delapidação de imagem enquanto alimento nutricionalmente completo e adequado a todas as idades, influenciando negativamente os consumidores, por produtos que querem ocupar o seu lugar no regime alimentar.

Por fim, a necessidade de preparar e trazer capital humano, tão necessário à manutenção, ao desenvolvimento e crescimento das indústrias.

Falando dos custos de produção, sempre tão sacrificados. Em que ponto estamos neste momento, depois de uma pandemia e de uma guerra que está a afetar a Europa? Há risco de muitas falências?

Em termos de custos de produção, a indústria passa por uma série de provas duras, que obrigam a pensar e a reorganizar processos, menorizando impactos mais gravosos.

Ao esforço considerável que tem sido feito para a manutenção da remuneração do leite recolhido junto dos produtores, temos que adicionar os incrementos muito substanciais dos demais fatores de produção: da energia aos transportes, passando pelas embalagens plásticas às caixas de cartão. Todos tão bem conhecidos. Aumentos estes que não conhecem calendário. Quero com isto dizer, que muitas das vezes não há uma cotação ‘fixa’ para uma encomenda colocada.

A complexidade dos desafios com que o setor se depara têm impacto imprevisível. Existe um grau elevado de fragilidade. Há uma preocupação crescente com os operadores, pois há os que correm sérios riscos de insustentabilidade em termos económicos e financeiros.

Em termos de custos de produção, a indústria passa por uma série de provas duras, que obrigam a pensar e a reorganizar processos, menorizando impactos mais gravosos

Por que razão os preços do leite à produção em Portugal continuam a ser inferiores à média da UE, além de sabermos que o preço ao consumidor é também um dos mais baixos a nível comunitário?

Neste capítulo, gostaria de reforçar o já referido esforço feito pela indústria para garantir um patamar de remuneração ao setor agrícola. Assim, face a março de 2021, ou seja, relativamente a um ano antes, os preços ao produtor aumentaram em Portugal 13,8%. Se nos reportarmos apenas aos preços do leite no Continente aquela percentagem sobe para 14,7%. Os dados de abril refletirão os aumentos efetuados num total de 9,5 cêntimos, colocando o leite em valores a rondar os 42 cêntimos.

Estes aumentos, sublinhe-se, foram feitos apesar de as empresas industriais não terem conseguido repercutir os incrementos do preço do leite e dos outros fatores de produção nos preços de venda dos seus produtos aos seus clientes diretos, as cadeias da grande distribuição.

A degradação dos preços do leite e dos produtos lácteos é fruto da continuada política de comercialização e de fidelização de clientes das diferentes insígnias, onde consecutivamente, e durante anos, foram utilizando o leite e os produtos lácteos como produtos chamariz, na sua estratégia e que temos vindo a denunciar. É incompreensível o grau de desvalorização que o índice de preços ao consumidor para os produtos lácteos revela nos últimos anos.

A Distribuição tem neste ponto uma influência gigantesca. De que forma é possível alterar este panorama?

A alteração deste panorama passa pela assunção de responsabilidade e por espírito de solidariedade por parte da distribuição, de forma a proteger a produção de leite e produtos lácteos nacionais.

É premente que a distribuição faça um caminho de aceitação e de diálogo negocial, em tempo útil, e que deixe cair as barreiras que constantemente coloca à aceitação de aumentos apresentados pelas empresas fabricantes, muito em especial nos produtos de marca de distribuição ou as chamadas marcas brancas. A não transmissão destes aumentos de custos ao longo da cadeia não é sustentável.

É importante que a ‘concorrência’ entre as principais cadeias de distribuição, pela conquista de consumidores e manutenção de quotas de mercado não esteja ancorada ao nível dos produtos básicos, como o leite, alguns queijos e iogurtes, especialmente quando estes concorrem diretamente com o preço dos produtos das marcas de distribuição.

É importante que as insígnias da grande distribuição revejam as suas políticas comerciais de forma a eliminar o chamado ‘financiamento cruzado’, que se constitui como um fator de distorção concorrencial, onde a baixa/nula margem dos produtos da distribuição é compensada pela margem superior imposta aos produtos de fabricante. Deste mecanismo resulta um diferencial injustificável ao nível do preço ao consumidor entre as marcas de fabricante e as marcas de distribuidor.

Sabemos já que no curto prazo o rendimento disponível das famílias vai diminuir, e que isso condicionará as escolhas do consumidor, que optará por produtos mais baratos (marcas brancas), afetando sobremaneira e de forma muito negativa a competitividade e a rentabilidade das empresas.

A inoperância por parte da distribuição, nos pontos atrás referidos, conduzirá muitas empresas do setor a implementar cortes radicais nas suas estruturas, com efeitos muito negativos a nível de emprego, por um lado, e por outro, ver-se-ão incapacitadas para atualizar o preço do leite ao produtor, colocando em sério risco uma enorme parcela da produção leiteira nacional.

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Falando da qualidade do leite nacional. Somos um País que, ao longo das últimas décadas, tem trabalhado na melhoria da qualidade do leite que produz sempre com a atenção à segurança alimentar devida. Como carateriza este panorama? As empresas apostam cada vez mais nestas premissas?

A qualidade do leite e produtos lácteos, em termos de segurança alimentar, é indiscutível. É um trabalho prolongado no tempo, como referido de décadas, e feito ao longo da fileira. É o resultado da aplicação dos princípios da legislação europeia em termos de segurança alimentar, que são muitos claros, e do cumprimento dos requisitos de higiene dos géneros alimentícios, que constantemente são monitorizados e controlados pela própria indústria.

Não poderia ser de forma diferente. Mas, neste capítulo os operadores vão além da responsabilidade, dos requisitos e padrões legais a observar. Existe uma malha cada vez mais alargada de indústrias que implementam os mais diversos sistemas de certificação.

Esta evolução, na qualidade de segurança alimentar, resulta não só do atrás referido e da vontade dos operadores, como da sujeição da indústria, além dos controlos oficiais, ao escrutínio regular por meio de auditorias de terceiros, nomeadamente, dos organismos de certificação, dos seus clientes e do próprio consumidor.

A nível tecnológico, que indústria e produção temos hoje? Faz falta um plano de modernização da indústria?

Ao nível tecnológico, a progressão é notória. Recorrer à tecnologia, nas suas diferentes vertentes, não é um luxo ou privilégio e é um elemento fundamental a nível industrial e empresarial, necessária à competitividade, à resolução de problemas, à eliminação de barreiras, à otimização dos processos e dos fluxos dos produtos e, muitas das vezes, percussora de inovação.

O atual parque industrial de laticínios, fruto de iniciativas puramente empresariais ou impulsionadas pelas novas exigências legais e de mercado, resulta dos significativos investimentos realizados nos últimos anos, não apenas ao nível da transformação, mas também em áreas da qualidade, do ambiente, da logística e da informação.

Mais que um plano de modernização da indústria, fazem falta a ‘desburocratização’ e agilização de apoios que permitam uma maior disponibilidade financeira para fazer face a novos investimentos, nas diferentes áreas tecnológicas. No atual momento, é de realçar todo o trabalho que será necessário para continuar a evoluir ao nível das energias mais limpas, da descarbonização e da transformação digital.

Portugal não é um país exportador em matéria de laticínios. Porquê? E o que propõe a ANIL nesta matéria?

Na verdade Portugal não é um país exportador em termos lácteos. Julgo que este facto radica na nossa dimensão e no pouco grau de diferenciação. Por força da nossa geografia, o nosso principal mercado de destino, o espanhol, e a diferenciação está aqui referida, pois para este mercado é exportado maioritariamente leite a granel.

Depois, é necessário referir que a maior parte das empresas é de pequena ou média dimensão, dificultando este facto o processo de acesso aos mercados internacionais, desde logo na avaliação do mercado e do processo negocial, bem como da área da distribuição e da logística.

Neste capítulo, é determinante a ação do Governo na agilização das exportações, delineando com e para o setor uma estratégia de internacionalização, atuando muito especialmente na concentração de esforços na elaboração de Missões, Feiras e outras ações de divulgação e promoção de Produtos Lácteos, na aposta de ações de cooperação, na promoção da redução de custos de transporte e de fretes…

“Açores representa, em volume, cerca de 35% da produção de leite nacional”

Os Açores são, provavelmente, a região mais importante no que toca à produção. Em matéria de exportação, o cenário é o mesmo?

A região Autónoma dos Açores representa, em volume, cerca de 35% da produção de leite nacional. Em termos de produtos lácteos transformados, foram produzidas na RAA 20% da produção nacional (197mil toneladas). Em termos de exportações, a Região exporta 10% do volume dos produtos aí produzidos para o mercado da União Europeia e 1% para Países Terceiros. 75% dos produtos produzidos nos Açores têm como destino o território continental.

Considera que tem feito falta um compromisso nacional e comprometedor da fileira láctea em Portugal em torno dos desafios e problemas do setor?

Não propriamente. Existem já instrumentos de autorregulação desenhados com a finalidade para potenciar a evolução positiva nas relações entre agentes económicos. Instrumentos com o objetivo de assegurar o fundamental e desejável equilíbrio e cooperação entre as partes, não apenas em defesa dos seus interesses, mas também em defesa dos interesses dos consumidores.

Fale-me um pouco do trabalho da ANIL e de que forma têm ajudado os vossos associados.

Desde que integrei a ANIL, continuo a sentir que o trabalho é de aprendizagem e atenção diária aos temas de interesse para os associados e para o setor. É um trabalho de entrega, representação e defesa do setor do leite e dos produtos lácteos junto das mais diversas entidades e nos mais variados fóruns. A ajuda aos associados faz-se de diversas formas, desde a preparação de informação económica, à difusão de informação legal e técnica, bem como à defesa que questões de fundo para todo o setor, pela preparação de dossiers ou tomadas de posição específicas. Na ANIL promovemos também a algumas ações de formação específicas e direcionadas ao setor bem como realizamos desde 2009 o Concurso Queijos de Portugal.

Por fim, que mensagem gostaria de deixar ao setor e que desafios futuros estão por cumprir?

Primeiramente, e neste contexto da incerteza que persiste em ficar, é bom pensar que momentos de grande ‘turbulência’ são geradores de mudanças e desafios, venham eles das mais diversas vertentes das políticas, económicas, da saúde ou das relações comerciais, mas por certo o caminho necessita ser encarado com otimismo, confiança e um certo atrevimento. No que diz respeito à indústria de laticínios nacional muitos são os desafios de futuro, manteremos sempre muita atenção para o evoluir das relações com os elos da fileira a montante e a jusante; é necessário encarar os desafios que nos são propostos pelas políticas comunitárias e nacionais relacionadas com a sustentabilidade e economia circular, a descarbonização e a digitalização. Um sentido maior relacionado com valorização do produto, pela inovação e evolução do produto, dos processos, embalagem ou pelo acompanhamento dos processos de reformulação. A promoção dos produtos e, em simultâneo, a sua defesa frente a produtos concorrentes de origem vegetal, ou a produtos análogos.

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